NOTÍCIA

Sameer Padania: “Mesmo com a existência de mídia independente, ainda há desigualdade de acesso à informação”

Palestrante do Festival 3i 2025, o pesquisador abordou a necessidade de ver o jornalismo como um direito fundamental

POR Ágatha Araújo |

07/jul/2025

A sustentabilidade financeira é um dos principais debates relacionados ao jornalismo digital, e as cidades podem desempenhar um papel de apoio ao jornalismo por meio da participação de empresas e do poder público. Convidado para o Festival 3i 2025, em junho deste ano, no Rio de Janeiro, o pesquisador e consultor independente Sameer Padania participou da mesa “O jornalismo (como conhecemos) acabou?” e da sessão de Diálogos e Tendências “Cidades que apoiam o jornalismo”, ao lado de Carla Egydio, Diretora de Relações Institucionais da Ajor.

Padania questionou o papel das cidades enquanto territórios de produção e fomento de jornalismo: “A cidade é onde as pessoas estão, onde os corpos físicos circulam e estão, e o jornalismo tem esse papel de informar e envolver, e precisa do poder público. Informação também pode ser bem-estar. Todos nós precisamos, coletivamente, de mais informação, dados, lazer e diversidade”, afirmou Sameer.

Convidado para compor o diálogo “Cidades que apoiam o Jornalismo” com a diretora de Relações Institucionais da Ajor, Carla Egydio, o pesquisador e consultor independente Sameer Padania questionou o papel das cidades enquanto territórios de produção e fomento de jornalismo. As cidades representam o contorno da vida cotidiana e carregam essa responsabilidade, podendo oferecer apoio ao jornalismo através da participação de empresas e do poder público.

Ele também citou países como Portugal e Áustria como referência em programas de fomento à produção de jornalismo local e ressaltou que o jornalismo precisa ser incluído na discussão de forma universal. “Saúde e educação são direitos, mas e a informação?”, disse.

Em entrevista exclusiva à Ajor, Padania aborda desigualdades no jornalismo, novas perspectivas para o ecossistema e seu financiamento. Confira na íntegra:

Ajor: Quais limitações no jornalismo tradicional seriam solucionadas pelo jornalismo independente?

Sameer Padania: Acho que o desafio é quando a indústria tem incentivos principalmente comerciais. Elas dizem coisas como: “queremos liberdade de imprensa, deveríamos ter incentivos fiscais”, porque “estamos fazendo algo pelo público”. Mas, no fim das contas, ainda são empresas, e vão tomar decisões sobre o que vão ou não cobrir.

O que acontece então é que surgem desigualdades de acesso à informação. A mídia tradicional, ou como você quiser chamá-la, cobre certos lugares e comunidades, e simplesmente ignora outras. No mundo inteiro, vemos comunidades que não têm atratividade publicitária ou viabilidade econômica para serem cobertas e ouvidas, e essas organizações não vão fazer isso, mesmo aquelas com ótima reputação.

Por isso, precisamos de outros tipos de incentivos e de jornalismo, que atinjam a consciência pública, promovam o debate, sejam plurais e envolvam outras perspectivas. E mesmo quando existe mídia local ou independente, ainda podem existir desigualdades, porque há comunidades que não têm acesso a espaços, tecnologias ou recursos financeiros. Muitas vezes, as pessoas nem as veem como portadoras de vozes legítimas.

Olhando para a estrutura como um todo, mesmo com a existência de mídia independente, ainda há desigualdade. Quanto mais você desce nesse nível, mais difícil fica, e maior é a luta.

Ajor: Você acredita que a chamada “mídia hegemônica” está em declínio? E se sim, pode apontar as causas para isso?

Sameer Padania: Todo o ecossistema mudou. Algumas organizações realmente não estão em crise – criaram paywalls, produtos especiais, têm equipes excelentes de pesquisa e desenvolvimento que conseguem investir. Mas muitas estão em dificuldades, sim.

Há uma dinâmica descrita naquele relatório “The New Deal in Journalism”, que é anterior ao boom do IA e foi feito durante a pandemia, quando as últimas ondas da crise começaram a se intensificar. Os grandes veículos, os “vencedores”, absorveram boa parte da fatia de mercado e ficaram cada vez mais fortes, enquanto os outros ficaram menores e tiveram que diversificar seus serviços apenas para sobreviver.

Acho que essa mesma dinâmica está acontecendo no jornalismo independente. Se olharmos os dados do FAJ (Fundo de Apoio ao Jornalismo), por exemplo, veremos que apenas nove veículos ficaram com 75% de todo o financiamento. Isso mostra que, mesmo no setor independente, ainda há concentração de recursos – alguns veículos são melhores em dialogar com financiadores, ou já construíram redes de contato. No fim, acontece a mesma coisa.

Ajor: Qual é a etapa mais desafiadora para uma organização na hora de conseguir financiamento?

Sameer Padania: É o fato de que ela precisa provar que o jornalismo pode promover crescimento econômico. Trabalhei com isso desde 2001 e, frequentemente, vi sempre o mesmo argumento: “Jornalismo é importante”, “É um bem público”, “Deveria receber financiamento do governo, do setor público, das big techs…”.

Mas, quando chegamos nesse ponto, sempre vem a pergunta: “mas como isso contribui para a saúde pública?”, “para a segurança?”, “para a educação?”. E então dizem: “O jornalismo precisa provar seu impacto”. Agora, além disso, é preciso mostrar que ele impulsiona o crescimento econômico, os negócios e a prosperidade.

Você precisa “provar seu valor”. Mas a realidade é que não dá, porque jornalismo não é um processo linear. Não é como distribuir vacinas, por exemplo. Não dá para quantificar dessa forma, por mais que se tente. E esse, para mim, é o maior desafio.

Existe uma pressão constante para demonstrar impacto antes de receber financiamento, ao invés de conceder os recursos e então observar os resultados e os múltiplos impactos possíveis. Você tem que ser articulado ao explicar esses impactos. Alguns investidores entendem isso, mas a maioria ainda está desconfiada e muito focada em retorno financeiro.

Ajor: Falando em estrutura de cidade… Eu li um artigo seu chamado “Como se defender da tecnologia de reconhecimento facial” e pensei na maneira como esse sistema foi integrado à infraestrutura e segurança da cidade do Rio desde 2019. No entanto, um levantamento revelou que 81% das prisões ilegais causadas por esse reconhecimento em 2024 foram de pessoas negras. Como você vê esse sistema atualmente? Mudou de ideia uma década depois?

Sameer Padania: Naquela época, – estamos falando de 15 anos atrás –, a tecnologia era muito diferente. Ela evoluiu, assim como as fontes de dados. Mas, naquele momento, o grande problema era que a base de dados usada nesses sistemas era extremamente enviesada, porque havia sido treinada com populações brancas da Europa e dos Estados Unidos, ou com dados da Ásia, como a China. Não existiam conjuntos de dados, ou reconhecimento facial adequado, para pessoas negras ou sul-asiáticas.

A tecnologia simplesmente não havia sido feita para reconhecer traços faciais de pessoas negras, o que resultava em muitos falsos positivos. Assim, os primeiros trabalhos em reconhecimento facial focavam muito nos danos causados pelo viés dos dados de treinamento. As pessoas eram identificadas erroneamente por esses sistemas.

Esse era o problema básico daquela tecnologia. Ela já era bastante usada, mas claramente enviesada, não conseguia reconhecer tons de pele corretamente, as câmeras não se ajustavam, havia muitos problemas. Então, não, eu não mudei de ideia. Dá para entender os argumentos de eficiência, mas tecnologias invasivas, que estão em toda parte e às quais não se pode dar ou negar consentimento, podem ser usadas para fins perversos.

Acho que essas tecnologias precisam ser estritamente controladas e muito bem regulamentadas. O problema é que essas ferramentas estão disponíveis para empresas que podem usá-las para fins privados, e ninguém sabe exatamente como. Em todo lugar que você anda, no shopping, por exemplo, há reconhecimento facial. E você não pode simplesmente dizer “não dou consentimento”, o que me parece uma situação absurda.

Matéria produzida pela equipe de estudantes de Jornalismo da Unifacha, em parceria com a Associação de Jornalismo Digital (Ajor). Supervisão: profª Ivana Gouveia. Foto: Any Duarte.