Palestrante do Festival 3i 2024, realizado pela Ajor, a pesquisadora abordou políticas públicas de fomento ao ecossistema jornalístico
abr 29, 2025
Por Carla Egydio e Tainah Ramos
Em um momento de crise global da sustentabilidade das organizações de jornalismo, buscar modelos de negócios que garantam a sobrevivência dos veículos e sua independência editorial é um dos principais temas que têm mobilizado governos, organizações da sociedade civil e empresas ao redor do mundo.
Convidada para participar da mesa “Modelos de política pública de fomento ao jornalismo de interesse público” no Festival 3i 2024, a gerente de advocacy e políticas do GFMD (Global Forum for Media Development), Laura Becana Ball, concedeu uma entrevista exclusiva à Ajor durante o evento. Na conversa, ela falou sobre a importância dos fundos públicos de financiamento do jornalismo, e detalhou quais devem ser os critérios básicos desse tipo de fomento.
“Acredito que os governos têm uma responsabilidade social de assegurar que o espaço informativo seja confiável, de forma que seus cidadãos possam confiar na informação que estão recebendo e tenham um acesso equitativo [à informação], não apenas nas áreas mais populosas, mas também nas menos populosas. Essa é uma perspectiva que acredito que esteja muito ligada aos direitos humanos e ao conceito do jornalismo como um bem público”, afirma .
Ao longo da conversa, Becana comentou também sobre o documento “Princípios de Cooperação para o Desenvolvimento da OCDE para Apoio Relevante e Eficaz à Mídia e ao Ambiente de Informação”, elaborado pelo GFMD em março do ano passado, e implementado pela OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico). Confira a entrevista na íntegra:
Ajor: Por que os países devem adotar medidas para garantir a sustentabilidade do jornalismo em seus territórios?
Laura Becana Ball: A razão principal é porque se vê que a influência das plataformas digitais, a ascensão do autoritarismo, o populismo, e tudo o que está afetando o espaço informativo, [também] está ameaçando a sustentabilidade do jornalismo. Sem normas ou algum tipo de regulação ou intervenção, não só dos Estados, mas também da sociedade civil e a da responsabilidade social que as empresas têm, isso não vai se solucionar sozinho – ao contrário, pode piorar.
Acredito que os governos têm uma responsabilidade social de assegurar que o espaço informativo seja confiável, de forma que seus cidadãos possam confiar na informação que estão recebendo e tenham um acesso equitativo [à informação], não apenas nas áreas mais populosas, mas também nas menos populosas e garantindo esse acesso a todas as comunidades do país, em todas suas línguas, de acordo com suas necessidades. Isso o mercado midiático não vai fazer por si só.
Essa é uma perspectiva que acredito que esteja muito ligada aos direitos humanos e ao conceito do jornalismo como um bem público. No entanto, não nos damos conta de que o jornalismo também tem uma certa influência no espaço econômico e não deixa de ser também um modelo de negócio. Então, considerando essa dualidade, entendo o medo de que haja influência ou interferência do Estado no que se publica. Compreendo que existem casos em que tanto interferência política, como a concentração dos meios de comunicação são problemas reais existentes e muito perigosos, que afetam não apenas a sustentabilidade dos meios, mas também o acesso à informação de confiança. Porém, isso não significa que devemos dar um passo atrás na decisão de criar determinadas normas que possam garantir essa sustentabilidade em longo prazo.
Por exemplo, a transparência é fundamental. Ou seja, saber quem está recebendo recursos, quanto está sendo destinado e evitar conflitos de interesse entre o governo e os beneficiários. O político responsável por liberar esses recursos públicos não pode, ao mesmo tempo, ter relação direta com quem os recebe. Esse financiamento precisa ser equitativo, com critérios para que um veículo possa ter acesso ao recurso, seja via governo, empresas privadas, ou qualquer outro meio. Mas é preciso haver transparência e critérios, não pode ser qualquer um.
Também é necessário haver garantias de independência editorial e também de padrões éticos, de que a informação seja precisa, neutra, objetiva – claro, também há contextos específicos em relação ao uso desses termos. Mas acredito que a transparência vem em primeiro lugar. Como cidadãos, temos o direito de saber quem está financiando um veículo, se há interesses políticos por trás, sobretudo os grandes veículos. Quem está por trás deles? Quais interesses têm? Essas são informações de interesse público. Até agora, são os jornalistas que investigam e trazem essas informações à luz — mas, na verdade, isso deveria estar acessível desde o início.
Ajor: Há países que têm fundos nacionais voltados para a sustentabilidade do jornalismo. Você pode comentar a importância dessa estratégia e quais as principais características e desafios desse modelo de financiamento público?
Laura Becana Ball: É verdade que há muitos tipos diferentes. Existem fundos criados por governos, mas também há fundos vindos de entidades privadas, filantrópicas ou até da sociedade civil. Em alguns casos, é a própria sociedade civil quem coordena a distribuição dos recursos. Há várias formas possíveis.
Conectando com o tema das políticas públicas, na verdade, não acredito que exista um modelo único que sirva para todos os países. O que se deve ter são critérios de como esse modelo vai se estabelecer. Há exemplos como o fundo da Argentina: houve muito esforço para implementá-lo, e ele funciona muito bem, de maneira bastante equitativa. Mas mesmo assim, está ameaçado com o governo atual. Ou seja, não só não existe o modelo perfeito, como também é muito difícil que um modelo resista a mudanças. Sempre pode haver uma mudança política que derrube uma iniciativa muito bem estruturada, ou uma mudança do setor, ou ainda uma mudança de interesse das filantropias ou das plataformas. Ou seja, há muitos fatores que podem interferir no funcionamento.
Por isso, acredito que um fundo tenha vida para além de um governo. Envolver a sociedade civil e outras instituições próximas ao jornalismo, como universidades e organizações especializadas, é o que pode conseguir que, no momento em que o Estado fique sem fundos, exista outras formas de resgatar a institucionalidade.
O Fomeca (Fondo de Fomento Concursable para Medios de Comunicación Audiovisual) [fundo argentino] existe há muitos anos, mas durou o tempo do mandato de um governo. Depois, com outro governo, foram estabelecidas regras novas, ainda muito equitativas e redistributivas. Mas com a troca de governo, o fundo perdeu objetividade e institucionalidade. Então, não acredito que exista um modelo perfeito. O que acredito é que todo modelo precisa levar em conta certos princípios. Transparência é essencial, para saber quais meios estão se beneficiando dos recursos. Talvez não seja necessário saber todos os detalhes — especialmente no caso de pequenos veículos — mas é preciso haver algum grau de transparência.
É essencial pensar em alguns critérios: a quem esses fundos estão sendo direcionados? Na Europa, por exemplo, onde há uma tradição de regulação ou até de autorregulação dos meios, em que tanto o Estado quanto os próprios meios têm um papel mais ativo, é mais fácil identificar quem é um meio de comunicação, porque está registrado junto à autoridade reguladora nacional. É mais fácil.
Lá, também existem freelancers, especialmente em tempos de crise econômica, mas talvez não haja tantos como, por exemplo, aqui no Brasil. Assim, quais critérios colocar? Se formos financiar o jornalismo, não podemos financiar apenas as organizações, já que existe uma grande quantidade de jornalistas que trabalham de forma autônoma, e que também fazem parte do setor. Os critérios precisam se adaptar à realidade.
É muito interessante falar dessa transparência, sobretudo porque existe um medo muito grande no Brasil quanto à regulação. Acredito que, na América Latina de modo geral, existe esse temor de que a regulação leve à interferência do Estado no conteúdo. É uma posição muito difícil porque o Estado estaria financiando meios que têm justamente a função de fiscalizá-lo e de criticá-lo quando erra. Estamos falando de profissionais que precisam responsabilizar o governo — mostrar o que está certo, mas também o que está errado.
Isso pode parecer muito contraditório, mas, na verdade, há modelos em que se cria um tipo de “firewall” — uma barreira —, um intermediário, como uma organização ou grupo de organizações, que decide sobre a distribuição dos recursos. Isso dificulta bastante qualquer interferência direta do Estado. E esse modelo dos intermediários não vale apenas para governos — também pode se aplicar às plataformas digitais. Quando a plataforma financia diretamente os meios, sem mediação, também há risco. O mesmo vale para fundações estrangeiras. Por isso, não gosto de defender um modelo único. Acredito que há muitas formas possíveis.
Ajor: O GFMD publicou um documento de advocacy voltado para a OCDE, você pode nos contar um pouco sobre este documento e qual a sua importância?
Laura Becana Ball: Assim como os fundos que discutimos até agora são iniciativas nacionais, existe também um documento que trata de princípios para o financiamento de mídia por meio da cooperação internacional — especialmente voltada aos países da OCDE.
Esse documento segue os mesmos critérios básicos: é necessário que o apoio seja estável, contínuo — não deve se limitar a projetos pontuais. Além disso, o fomento precisa ter visão de sistema, de estrutura mais ampla. Como disse antes, o jornalismo é um bem público, mas muitas variáveis interferem no mercado. Não se trata só de dinheiro, mas de como esse dinheiro é distribuído.
Esse é um ponto importante: quando o financiamento vem de fora, especialmente da chamada minoria global — Europa, Estados Unidos, Canadá —, há o risco de se impor uma agenda. Não pode ser algo como “Eu te dou essa ajuda, mas você vai falar sobre isso.” As iniciativas precisam ser baseadas no contexto local. Não se pode dizer a um meio brasileiro o que deve cobrir. Mesmo que o tema pareça relevante para o Brasil – ou para a Amazônia, por exemplo –, o tema precisa partir da realidade local.
Senão, há o risco de um tipo de colonização. Sei que nem sempre é intencional, mas existe uma mentalidade de superioridade, uma ideia de que “nós sabemos fazer melhor”, que impõe prioridades externas ao contexto local. Então, os princípios do documento servem como diretrizes sobre como deve ser o apoio internacional ao desenvolvimento do jornalismo.
Esta entrevista é um exemplo do tipo de discussão que promovemos no Festival 3i, que tem se consolidado como um dos principais eventos da América Latina para discutir as inovações e desafios do ecossistema jornalístico. A Ajor já está preparando a edição de 2025! Por isso, fique de olho nas nossas redes sociais! Se quiser receber em primeira mão as informações sobre o festival, escreva para festival3i@ajor.org.br