Conheça iniciativas de comunicação criadas por jornalistas de periferias de norte a sul do país que trabalham para informar suas comunidades e combater estereótipos.
Texto: Artur Alvarez / Edição: Giulia Afiune / Ilustração: Miréia Figueiredo
As periferias ocuparam o centro do debate sobre jornalismo na noite desta quinta-feira (24), penúltimo dia do Festival 3i, promovido pela Associação de Jornalismo Digital (AJOR). Na mesa “A periferia no centro, no centro da periferia”, dez coletivos de jornalismo baseados em periferias de norte a sul do país se reuniram para explicar como contam histórias potentes sobre os seus territórios a partir do seu próprio ponto de vista e como rompem com os estereótipos normalmente associados a esses lugares.
“São histórias que nunca apareceram no jornal, histórias que nunca foram contadas. Então são jornalistas das periferias, escrevendo sobre as periferias, para as periferias e também para fora delas”, afirma Jefferson Barbosa, do PerifaConnection, que se autointitula “uma plataforma de disputa de narrativa das periferias”. Para ele, as iniciativas reunidas no debate estão afirmando seu lugar dentro do jornalismo e, dessa forma, legitimando fontes de informação, repórteres e fatos que antes não eram reconhecidos. “Quando coloca a periferia no centro não é sobre segmentar, criar senzalas nas redações, mas sobre criar as próprias redações”, defende.
Os moradores de favelas representam um contingente enorme da população brasileira, pouco mais de 8%, mas não têm a representação devida nem na mídia tradicional nem no Estado, segundo Daniele Moura, coordenadora do projeto Redes da Maré. “[É necessária a] construção de novas narrativas que possam ampliar a visão sobre as favelas, sob a perspectiva da potência e do valor dessas comunidades, além da efetivação de direitos básicos e fundamentais”, afirma Daniele. O projeto Redes da Maré busca levar informação a todos os moradores do complexo de favelas da Maré por meio de um portal e um jornal impresso, distribuído nos 47 mil domicílios do bairro localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro.
Muitos dos veículos reunidos na mesa surgiram a partir da necessidade de quebrar os estereótipos que eram usados pelos meios de comunicação tradicionais para falar sobre aqueles territórios. “O Voz das Comunidades surge em 2005 com a necessidade de que a grande mídia falasse da favela de forma realista, e não de forma fantasiosa e bastante equivocada, com muitos estereótipos: mortes, tiroteios, operação policial. Mas quase nunca falam sobre as iniciativas legais que estão acontecendo nas favelas, culturais e sociais, ou até mesmo dos outros inúmeros problemas sociais que existem, como saneamento básico, falta de iluminação pública, acesso à moradia digna e à água limpa”, reflete Rene Silva, fundador do Voz das Comunidades. Nos últimos anos, o jornal que ele criou quando criança para sua comunidade no Complexo do Alemão se tornou um dos maiores veículos comunitários das favelas cariocas. Segundo Rene, essas iniciativas também têm a missão de informar a população sobre sua própria realidade e de gerar espaços de reflexão e conscientização social.
“Para mim, esse é o jornalismo de verdade, feito pelas próprias pessoas que são das quebradas e entendem realmente aquela realidade”, disse Caê Vasconcellos, repórter especializado na editora LGBT+ da Agência Mural de Jornalismo das Periferias, veículo que cobre as periferias da Grande São Paulo desde 2010.
Iniciativas de jornalismo comunitário criadas em outras periferias fora do eixo Rio-São Paulo também foram apresentadas durante a mesa e seus representantes enriqueceram o debate com impressões e reflexões acerca destes territórios.
A Abaré é uma iniciativa de jovens jornalistas focada em produzir jornalismo local e promover a educação midiática em Manaus e em comunidades do interior do estado do Amazonas, que são desertos de notícias, segundo Alessandra Taveira, diretora de educação da entidade. “Aqui, a realidade do jornalismo é difícil, tem muito sensacionalismo e não se aprofunda nas questões da região, e isso nos inquietou”, conta.
Também na região Norte, a jornalista paraense Joyce Cursino dirige a Negritar Filmes e Produções, organização que percorre territórios periféricos do Pará e do Amazonas levando a democratização do acesso ao cinema, promovendo rodas de conversa a partir de pautas políticas relevantes nesses locais, e produzindo filmes em conjunto com as próprias comunidades, nos chamados “laboratórios de narrativas”. Joyce ressalta que a Negritar é composta 100% por pessoas pretas porque “se não resolver o racismo primeiro, não vamos resolver as outras mazelas atreladas a ele”.
No Rio Grande do Sul, o estudante de jornalismo Emerson Santos idealizou o portal O Periférico. “Porto Alegre é um lugar que necessita muito de iniciativas que olhem para a periferia como ela é a partir dela mesma”, considera.
Também foi a falta de espaço na mídia tradicional pernambucana que motivou a criação da Agência Retruco em 2018, no Recife. “O cenário de comunicação do Recife é complicado em vários sentidos, pequeno, exploratório e sucateado. A Retruco faz um jornalismo que a gente acredita, algo inviável na mídia tradicional”, conta a jornalista Eduarda Nunes, coordenadora de conteúdo da Retruco, que ela considera “um laboratório de jornalismo”.
Financiar o jornalismo periférico ainda é um desafio
Apesar do grande número de iniciativas de jornalismo periférico que têm surgido no Brasil e da importância desse trabalho, os palestrantes contam que a sustentabilidade financeira é um dos maiores gargalos para esses veículos.
“Sempre vi muitas iniciativas que acabaram ou estão acabando por falta de sustentabilidade”, conta Jefferson Barbosa, do PerifaConnection. Ele explica que a sociedade civil, ONGs, empresas e fundações têm se movimentando mais para apoiar essas iniciativas de comunicação nos últimos anos, mas que isso ainda não é suficiente. Algumas das instituições que apoiam essa produção são a Iniciativa Pipa, a PaJor, da Repórteres Sem Fronteiras, e a própria AJOR.
Lia Vianna, jornalista do carioca Favela em Pauta, concorda com Jefferson e acrescenta uma crítica às empresas privadas, que muitas vezes apoiam iniciativas nas favelas, mas apenas para se promover. “Faltam empresas mais engajadas pelo social, e não somente pela imagem. Elas precisam entender que periferia é um lugar de potência e não de coitadismo”, ressalta.
Conseguir financiamento por meio de bolsas e editais também é um desafio. Cofundador e editor-chefe do Fala Roça, associação de comunicação sem fins lucrativos da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro, Michel Silva cita a concentração desse dinheiro nos projetos da região sudeste. Já Eduarda Nunes, jornalista da pernambucana Agência Retruco, relata editais ‘inalcançáveis’. “São muitos pormenores que inviabilizam projetos incríveis”, diz.
“A sustentabilidade do Negritar tem se baseado em construir coletivamente o financiamento de cada pauta com parceiros da região que tenham os mesmos interesses e objetivos, o que custa muito caro, porque queremos potencializar pessoas pretas, periféricas da Amazônia”, relata Joyce Cursino. Com a dificuldade de encontrar parceiros, Joyce diz que recorre a financiamentos coletivos para manter o negócio de pé.
Grande parte dos palestrantes relatou que precisa manter um emprego fixo fora das suas respectivas iniciativas de comunicação periférica, para que eles possam pagar suas contas, se sustentar e, às vezes, até financiar a produção independente do próprio bolso. Eles ressaltaram que as iniciativas de jornalismo periférico também precisam ser consideradas como “jornalismo profissional”.
“Nos últimos anos eu parei de usar o termo ‘jornalismo comunitário’ e passei a falar ‘jornalismo de favelas’, para afirmar que existe jornalismo de qualidade e profissionalismo sendo feito da periferia – que curiosamente nunca é reconhecido como profissional, dizem que é apenas um jornalzinho de favela”, afirma Michel Silva, do Fala Roça. A iniciativa independente tem jornal impresso e online, produz pesquisas, firma parcerias com ONGs e oferece oficinas para a comunidade.
Como envolver a comunidade na produção das notícias?
Outra novidade trazida pelos coletivos de comunicação periférica são novas maneiras de se conectar e se comunicar com o público da sua quebrada.
Daniele Moura, do Redes da Maré, relata que o veículo está pensando em fazer reuniões de pauta na praça para incentivar sugestões diretas da população. “Já temos uma dinâmica muito próxima com o morador da Maré porque é a nossa equipe quem faz a distribuição do jornal de porta em porta. Inteiramos essa equipe sobre o que está no jornal para eles estarem preparados a debater pautas com as pessoas durante a distribuição. Depois a gente faz o retorno dessa discussão: escutamos o impacto do jornal nos leitores e as sugestões de pauta que voltam”, explica.
Como jornalistas, também é importante estar presente nos espaços de discussão daquela comunidade, sejam eles físicos ou virtuais. “Eu, enquanto jornalista, faço questão de participar do grupo de Whatsapp criado por moradores. Eles mandam link pedindo para entrar e querem que você esteja lá não só para ser replicador, mas também para ser um apurador da informação”, diz Michel Silva, do Fala Roça. “Se tornar uma referência local é muito importante para que o veículo tenha um alcance maior dentro do território”, completa.
Joyce Cursino fala de outra contrapartida que a Negritar oferece para o seu público. “Muitos nos procuram para emplacar suas requisições para a mídia tradicional. Então o que fazemos muitas vezes é dar oficinas de como o morador pode transformar sua demanda em reportagem”, diz.
A mesa A periferia no centro, no centro da periferia teve como Anfitriões o PerifaConnection, o Maré de Notícias e a Agência Mural de Jornalismo das Periferias. O PerifaConnection se intitula como “Somos uma plataforma de disputa de narrativas sobre as periferias🚀”. O Maré de Notícias é uma iniciativa da Redes da Maré, instituição da sociedade civil que produz conhecimento, elabora projetos e ações para garantir políticas públicas efetivas que melhorem a vida dos moradores das 16 favelas do complexo há mais de 20 anos. A Agência Mural de Jornalismo das Periferias tem como missão minimizar as lacunas de informação e contribuir para a desconstrução de estereótipos sobre as periferias, em especial na Grande São Paulo.
*Texto produzido pela redação-laboratório do Projeto Repórter do Futuro, da OBORÉ, para o Festival 3i 2022 como parte da Cobertura Colaborativa #FocaNo3i.
Assista a mesa na íntegra: