Em entrevista exclusiva, a jornalista aborda a representatividade nas redações e a importância dos dados interseccionais na transformação do jornalismo
07/jul/2025
Nos últimos anos, o jornalismo brasileiro tem sido marcado por diversos debates sobre diversidade, inclusão e inovação nas maneiras de produzir e distribuir informação. Em meio a um contexto de transformações sociais e tecnológicas, pautas como a representatividade nas redações, a produção de dados interseccionais e a construção de narrativas acessíveis ganham protagonismo. A jornalista e pesquisadora Vitória Régia da Silva, diretora executiva da organização Gênero e Número e vice-presidente do Conselho Deliberativo e Executivo da Ajor, concedeu uma entrevista exclusiva durante o Festival 3i 2025, que aconteceu em junho deste ano, no Rio de Janeiro.
Na conversa, ela fala sobre o papel do jornalismo de dados como uma das principais bases na prática jornalística direcionada aos direitos humanos e explica a importância dos registros de dados interseccionais. “O Brasil é referência na transparência, mas estruturalmente a gente vive um apagão de dados interseccionais. Muitas vezes, tem o dado, mas não tem o recorde de gênero, raça e sexualidade. Você não consegue entender o perfil daquelas pessoas, que é essencial para o trabalho do jornalista, para ele entender e realizar uma pesquisa melhor. Como a gente vai pensar em políticas públicas efetivas se a gente não tem o dado que direciona como construir essa política pública mais localizada? Então a gente ainda tem desafios grandes no acesso aos dados interseccionais”, afirma. Confira a entrevista na íntegra:
Ajor: Você tem uma longa trajetória produzindo jornalismo com foco em gênero, raça e sexualidade. Como avalia o avanço (ou retrocesso) da representatividade nas redações digitais brasileiras nos últimos anos?
Vitória Régia: Comecei a trabalhar com esse tema a partir de 2015, na revista Capitolina, e na Gênero e Número em 2017, participando de iniciativas pioneiras que vinham para cobrir essa lacuna no jornalismo naquele momento. Quando essas organizações nasceram, a gente não tinha esse debate posto no jornalismo. Eram veículos pensados com essa perspectiva de gênero, raça e sexualidade.
Mas, ao longo dos anos, com a presença e com a mudança do perfil dos jornalistas, a gente viu mais mulheres, mais pessoas negras, mais pessoas de classes mais baixas que não eram da elite fazendo parte do jornalismo e pressionando. Porque o jornalismo precisa representar a sociedade brasileira. A gente começou a ver algumas mudanças, passou a ver grandes veículos criando editoriais para falar, por exemplo, de gênero e de sexualidade. Algumas delas, infelizmente, nem se mantiveram, já acabaram. O que mostra também como esse debate, apesar de ter avançado um pouco, não foi de forma sistêmica e estruturada, e como a gente ainda precisa avançar.
Então, vejo uma melhora, tanto quando a gente vai olhar para os perfis das lideranças no jornalismo independente, para como essa pauta está colocada também nos grandes veículos, mas ainda tem um trabalho muito grande pela frente, de fazer o campo do jornalismo e a sociedade entenderem a importância de tratar dos temas relacionados a gênero, raça e sexualidade. Não olho isso como recorte, que é como o jornalismo olha de uma forma mais ampla. Para mim e para o trabalho que a gente faz na Gênero e Número, falar de gênero, raça e sexualidade é a base do trabalho jornalístico. Não tem como fazer jornalismo sem falar sobre gênero, raça e sexualidade. Então, é essa mudança mais estrutural e sistêmica que a gente precisa fazer no jornalismo. A gente tem feito isso a partir desse movimento meio de formiguinha, aos poucos, criando novos veículos, apoiando ações de diversidade e inclusão nos grandes veículos, apoiando programas de trainee, por exemplo, específicos para jornalistas negros ou LGBTs. São caminhos interessantes, mas isso precisa vir do topo também, das lideranças e das organizações.
Ajor: A Gênero e Número se destaca por relacionar o jornalismo de dados e diferentes temas de diversidade. Quais os principais desafios você encontra ao traduzir dados complexos em narrativas acessíveis e impactantes?
Vitória Régia: A grande proposta da Gênero e Número é fazer essa intersecção entre dados e a cobertura especializada em gênero, raça e sexualidade. Em 2016, esse debate e essa cobertura de dados não eram tão presentes como hoje. Houve avanços nesse sentido. A gente entende que o nosso trabalho é muito importante por conseguir traduzir temas complexos e análises de dados que o público e, muitas vezes, nem os jornalistas conseguem ter acesso. Porque ainda dificultam o nosso acesso aos dados.
O Brasil é referência na transparência, mas estruturalmente vive um apagão de dados interseccionais. Muitas vezes, você tem o dado, mas não tem o recorde de gênero, raça e sexualidade. Você não consegue entender o perfil daquelas pessoas, que é essencial tanto para o trabalho do jornalista quanto para ele entender e realizar uma investigação melhor. Como pensar em políticas públicas efetivas se não tem o dado que direciona como construir essa política pública mais localizada? Então ainda temos desafios grandes no acesso aos dados interseccionais.
E é por isso que na Gênero e Número começamos a produzir dados também. Além de trabalhar com os dados oficiais que já existiam, produzimos pesquisas, pensamos sempre em novas metodologias, como a Geração Cidadã de Dados, que é uma metodologia que pensa como produzir novos dados a partir das comunidades para conseguir impactar também o ecossistema de jornalismo. Para o jornalismo continuar tendo essa missão e essa perspectiva que é de investigar o poder público, denunciar violações e potencializar o que as mulheres, as pessoas negras, os indígenas e (os membros da comunidade) LGBT+ já pensam de soluções para os nossos desafios.
Ajor: Como vice-presidente do Conselho da Ajor, que tipo de alianças ou articulações entre organizações de mídia digital você acredita serem fundamentais para o fortalecimento do ecossistema jornalístico brasileiro?
Vitória Régia: Eu acredito muito na formação de redes, na formação de alianças. E claro que, dentro disso, acredito muito no trabalho da Ajor. Porque, muitas vezes, a gente trabalha no ecossistema de jornalismo de uma maneira muito individual. Cada organização faz o seu, não tem essa conversa mútua. E acho que a Ajor veio para unificar essas organizações para permitir mais trocas, colaborações e conexões.
Vejo com muito orgulho iniciativas que já existem, como a Coalizão de Mídias Negras e Periféricas. A gente precisa de mais iniciativas, redes como essa. É hora de pensar isso no campo dos veículos de gênero também. Já tem vários veículos de gênero no Brasil, mas precisamos criar alianças para pensar a sustentabilidade das organizações, que é um dos grandes eixos do trabalho da Ajor: falar sobre sustentabilidade e empreendedorismo.
Acho que precisamos expandir as nossas parcerias e redes para além das parcerias de conteúdo, porque isso já fazemos bastante. Trabalhamos em colaboração, fazemos e publicamos reportagens em conjunto… Nesse âmbito mais institucional, é muito importante pensar quais são os desafios e quais são as necessidades para o futuro do jornalismo, e criar redes, coalizões, inclusive que levem em conta as diferenças territoriais. O Brasil é um país enorme, então é essencial continuar nesse movimento e ter mais desse tipo de articulação.
Ajor: Você tem experiência em publicações coletivas e colaborações com outras jornalistas e pesquisadoras, como a coautoria do livro “Capitolina, o mundo é das garotas” e a colaboração no livro “Explosão feminista”. Qual o papel dessas redes colaborativas para fortalecer vozes feministas no jornalismo?
Vitória Régia: É essencial, porque organizações independentes e digitais, principalmente, que é o nosso foco no Festival 3i, fazem um trabalho muito legal, mas gostaria que chegassem a um público mais amplo, que mais pessoas lessem esse conteúdo. Essas parcerias de conteúdo são essenciais para furar as bolhas, para chegar em pessoas que não conheceriam o meu trabalho ou da minha organização, mas que conhecem a partir de parcerias.
Por isso, para mim é muito importante pensar na inovação das narrativas, porque quando a gente pensa só a reportagem, aquele padrão, que é até o que eu aprendi na faculdade, mesmo já no ambiente digital, a reportagem de veículos tradicionais, a gente exclui uma parcela da população de ter acesso àquela informação. Por isso é importante inovar nas abordagens, nas narrativas, pensar em como dialogar com o TikTok, com o audiovisual, como e se deve produzir documentários curtos, podcasts, outras formas de narrativas, que consigam chegar nas pessoas de uma outra maneira. E, como tem essas questões mais sistêmicas, essas dificuldades de infraestrutura, de tamanho de organização, quando fazemos isso em colaboração ganha mais força, mais fôlego, tem mais recursos, tanto financeiros quanto de pessoas, para produzir. E produz sempre melhor, porque é mais gente pensando junto. Então, acredito muito que a colaboração é o único caminho possível para a continuidade do jornalismo brasileiro.
Ajor: O que você enxerga como os principais caminhos e urgências para o futuro do jornalismo digital no Brasil?
Vitória Régia: Acho que antes de tudo é pensar a sustentabilidade do jornalismo, que é essencial, porque sustentabilidade é pensar infraestrutura, sustentabilidade financeira, mas está para além disso, é pensar a formação dos novos jornalistas que vão estar nessas redações, nesses veículos, já estão ou vão estar nos próximos anos, é pensar a nossa conexão com a audiência, em como dialogar com o campo. Precisamos trabalhar em conjunto. Então, pensar nessas diferentes formas de sustentabilidade é o nosso maior desafio nesse momento.
Temos focado muito em falar sobre a sustentabilidade financeira e de infraestrutura. Já a sustentabilidade, quando se fala de tecnologia, aí entra o debate da inteligência artificial. Esses são os principais temas que temos discutido de uma forma mais ampla no campo. Mas existem essas outras formas de sustentabilidade que é preciso também olhar, analisar, que são essenciais para o jornalismo. E, para além da sustentabilidade, vemos uma diminuição do apoio da filantropia a temáticas de justiça de gênero e racial, e vê também, com essas mudanças geopolíticas, que está sofrendo retrocessos. Acho que um dos grandes desafios do jornalismo vai ser como manter a diversidade como um eixo do nosso trabalho, das nossas organizações, da nossa cobertura, em um ecossistema que não está propício para isso.
Ajor: Que conselhos você daria para jovens jornalistas que desejam atuar em veículos independentes e especializados como a Gênero e Número?
Vitória Régia: Eu sou o tipo de pessoa que ainda incentiva muito as pessoas a acreditarem no jornalismo. Acho que, mais do que nunca, a gente precisa do jornalismo e das pessoas comprometidas com o impacto social, comprometidas com o jornalismo que acredita e que é alinhado com direitos humanos, que acredita que nosso trabalho é essencial para a continuidade da democracia.
Então, meu primeiro conselho é: continuem, não desistam, mesmo que o cenário fique difícil. Existem várias formas de fazer jornalismo. A gente também tem aprendido no ecossistema essas diferentes formas de fazer jornalismo. Para quem se interessa por temas voltados a direitos humanos, quer trabalhar em veículos independentes, o primeiro conselho é pensar inicialmente, por exemplo, numa pauta, num tema, que é uma ótima forma de ter esse primeiro contato e de se aproximar das organizações. A maioria delas é aberta a frilas, a colaborações. Então pensar numa pauta, mandar para essas organizações, participar de eventos também como o 3i, como a Abraji, o CODABr, para quem gosta de jornalismo de dados, são ótimos momentos para vocês conhecerem quem são as pessoas que estão à frente das organizações, fazer esses contatos. Não tem que ter vergonha. Manda e-mail, se apresenta, fala dos seus interesses. A gente precisa dar também um novo fôlego para o campo.
Acredito muito no potencial da juventude em fazer as mudanças que o jornalismo precisa. Então é isso, não desistam, se arrisquem, entrem em contato com as organizações e com as pessoas. Já conversei com muitos estudantes que ficam meio inseguros, mas o jornalismo é um campo de aprendizado, está tudo bem não saber tudo, o importante é ter uma boa ideia, uma boa pauta, que o resto vai se ajustando. Sempre que tiverem oportunidade de fazer workshops, cursos, formações, façam, que com certeza só vai acrescentar para o conhecimento e trabalho de vocês. Formações que levem em conta direitos humanos e a questão de gênero, raça e sexualidade, porque independentemente da editoria em que vocês forem trabalhar, esses debates são transversais, é como se fosse uma lente para qualquer trabalho que vá fazer em jornalismo.
Matéria produzida pela equipe de estudantes de Jornalismo da PUC-Rio, em parceria com a Associação de Jornalismo Digital (Ajor). Supervisão: profª Itala Maduell. Foto: Gabriela Falcão.