Quando o ofício é criminalizado: a luta de jornalistas brasileiros em exercer a profissão em plena democracia

Jornalistas relatam casos de violências físicas e judiciais que sofreram ao longo da carreira; Instituto Tornavoz é lançado com o intuito de apoiar a imprensa nesses casos. 

Texto: Mariana Assis/ Edição: Anelize Moreira/ Ilustração: Miréia Arruda*

“Eu achava que apurar a reportagem em profundidade, escrever um texto que não deixa pergunta sem resposta, tinha um escudo protetor. Esse episódio mostrava que não era verdade. Você pode seguir todos esses procedimentos, todas as cautelas, com respeito com o fato noticiado e, mesmo assim, ser alvo de uma avalanche de ações”, disse a jornalista Elvira Lobato ao contar de quando recebeu 111 ações judiciais após publicar reportagem a respeito da Igreja Universal do Reino de Deus, no jornal Folha de São Paulo, em 2007. “Não era uma ação judicial de defesa, mas de ataque”, afirmou. 

O depoimento de Lobato se somou ao do jornalista Juca Kfouri e do fotógrafo Alex Vieira na mesa Tornavoz: em defesa da expressão livre, que aconteceu no final da tarde desta quarta-feira (23) no Festival 3i. A mesa trouxe  relatos de profissionais da imprensa que sofreram ações judiciais ou foram atacados fisicamente no exercício da profissão. O encontro foi marcado também pelo lançamento do Instituto Tornavoz, associação que  visa garantir a defesa judicial de pessoas que sofrem ameaças ou processos em razão do exercício da manifestação do pensamento e da expressão.

Lobato, uma jornalista veterana, vinha há alguns anos realizando investigações jornalísticas sobre a Igreja Universal do Reino de Deus. Com enfoque patrimonial, a reportagem intitulada de “Universal chega aos 30 anos com império empresarial” mostrava o conglomerado de empresas da igreja. Apesar disso, a principal argumentação que embasou as ações judiciais que recebeu, que quase sempre apresentavam o mesmo texto, era de que a jornalista tinha proporcionado um abalo de fé.  

As ações tinham por característica não só o texto parecido, como também terem sido movidas em cidades interioranas, o que dificultaria o comparecimento da jornalista nas audiências. Sob o apoio do jornal, que delegou pessoas a representá-la, especialmente quando havia mais de três audiências em um só dia, advogados acompanharam Lobato durante todo esse tempo. A jornalista venceu todas as ações nos tribunais, mas acredita que a igreja foi vitoriosa. “A igreja venceu a queda de braço porque eu era aquela repórter que fazia uma cobertura permanente, sistemática, de radiodifusão e de telecomunicações e eu tive que sair de campo. A batalha judicial foi um divisor de águas na minha carreira, importava calar o jornalista”. 

O TornaVoz parte da experiência da advogada Taís Gasparian que é especialista na área do direito civil relacionada à mídia, à publicidade e à internet e que há mais de três décadas representa jornalistas e veículos de comunicação. O objetivo da associação é reunir um grupo de advogados especializados na área e que possam atuar em diversas demandas para apoiar réus, além dos advogados envolvidos em casos que tratem de questões de liberdade de expressão e manifestação do pensamento.  

Em 2021, o Brasil teve quase três  casos de violência contra jornalistas por dia, segundo relatório da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert). De acordo com o estudo, as três principais violações às liberdades de imprensa e de expressão no período analisado foram de ofensas, agressões e intimidações. O número de atentados contra jornalistas dobrou, passado de quatro para oito. Em 50% dos casos, armas de fogo foram utilizadas contra os profissionais.

Em 2000, Alex Silveira foi atingido por uma bala de borracha enquanto cobria um protesto que reivindicava melhores condições trabalhistas aos professores na capital paulista. A bala de borracha disparada pela Polícia Militar foi na direção de um dos seus olhos, o que lhe trouxe danos irreversíveis. Alex perdeu a visão no exercício da profissão.

O fotógrafo, acostumado a cobrir hard news, com pautas envolvendo segurança pública e demais temas, foi deslocado para coberturas mais tranquilas, sem tantos riscos aparentes. O trabalho, que lhe trazia muita motivação, foi ficando sem sentido. “Pedi para sair [do jornal]. Eu já não estava mais feliz por questões óbvias”, confessa. Depois de duas décadas, o Supremo Tribunal Federal (STF) deu parecer favorável ao fotógrafo,  mas até o momento Silveira não recebeu indenização financeira. 

“Você não pode se intimidar”, disse confiante e convicto Juca Kfouri. Mesmo sendo, por diversas vezes, alvo constante de perseguições e ações judiciais, o jornalista convoca a toda classe a não ter medo. Com processos morosos judicialmente, e que nem sempre são imparciais, Kfouri alerta que haverá vontade de desistir, desânimo, mas o direito de exercer a profissão deve ser o imperativo.  

*Texto produzido pela redação-laboratório do Projeto Repórter do Futuro, da OBORÉ, para o Festival 3i 2022 como parte da Cobertura Colaborativa #FocaNo3i.

Assista a mesa na íntegra:

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